quinta-feira, 22 de março de 2012

Do outro lado da porta

Duas vozes confusas ecoando pelo corredor frio.

Eles estão certamente discutindo o tema da próxima reunião. Os barulhos de papel são fruto das anotações e leituras das propostas feitas.

Eles podem estar planejando um golpe para recuperar o posto de diretor-chefe. O cheiro de café mostra a preocupação de se manterem atentos.

Eles provavelmente estão fazendo piadas sobre o chefe que parece ter mudado a dentadura. A água que escorre pelo chão deve ter sido um gesto brusco dele dando uma risada.

Eles devem ser amantes e só tem oportunidades seguras de encontros naquela sala. A respiração alta só pode ser do sexo.

Eles são vizinhos, ele é gay, ela é gay, e os dois estão dormindo neste momento na sala, porque ontem a noite foram ao show da Madonna e ainda não tiveram tempo para descansar. Tentaram se manter acordados com o café e água gelada, mas foi inútil, o máximo que conseguiram foi deixar o corredor com cheiro bom. Dormiram em cima de papéis importantes. Ele descobriu que ela ronca, a respiração é extremamente alta. Quando ouviram o telefone tocar, acordaram rápido demais e deixaram derramar o copo d'água que pegaram.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Perspective-me

Fui àquela médica impaciente. Eu impaciente, ela impaciente. Naquela sala de espera, um coisa me fez perder parcialmente o tédio. Uma garota esquisita, sentava com as pernas dobradas, uma em cima da outra e lia um livro de capa preta que eu não consegui reconhecer. Ela não olhava para ninguém na sala. E eu nem sabia se ela iria se consultar mesmo. Parecia que estava em outro lugar, não tinha muito jeito que saía com frequência de casa, a não ser, talvez, para uma biblioteca ou ao colégio. Devia ter 15 anos e os pais provavelmente eram severos com ela. Ficava imóvel, só mexia os dedos para passar as páginas e os olhos. Assustadora. Aposto que o livro de capa preta era de magia negra ou coisa parecida.

Estava eu lá, na minha, de boa, vendo Bob Esponja a contragosto. Aquela sala lotada de gente falando alto e perguntando coisas sobre a vida alheia. A médica parecia que não queria atender às pessoas, eu já estava há uma hora esperando pra ser atendida e tinha uma menina me incomodando. Ela ficou essa hora inteira, e continuou, com as pernas cruzadas lendo. Não é possível que uma pessoa consiga ficar nessa posição por tanto tempo sem levantar nem o rosto pra olhar as horas. Tinha cara de criança, devia estar lendo Harry Potter ou algo do tipo.

Nunca mais volto naquele lugar. Muito lotado, muito calor e muito barulho. Acho que só tinha uma pessoa em silêncio naquela sala. Ela lia um livro com tanto afinco que reparei nas pessoas do lado analisando-a, assim como eu fazia. Pelo tempo que passou na mesma posição, lendo sem esboçar qualquer emoção, devia ser um livro da faculdade. Ela usava óculos e roupas simples, mas impecáveis. Parecia que estudava numa faculdade boa, mas não saía por aí se gabando por isso. Gostei dela. Se eu não fosse tão tímido, falava com ela. E de qualquer forma, o barulho era tanto que provavelmente ela não me escutaria.

Se eu contar você não acredita. Achei a médica dos meus sonhos. Aquela sala de espera não era lá muita coisa, mas eu vi tanta gente diferente passando pra lá e pra cá, que me distraí. A mais estranha delas era uma mulher pequena. Toda retorcida num pedaço do banco. Parecia um bichinho ameaçado encolhido num canto. Tinha nas mãos um livro e quase não vejo o rosto dela de tão enfiada naquelas páginas que tava. Tinha cara de criança, mas criança não fica assim, lendo sem parar e sozinha numa sala de espera. A menos que ela seja moradora de rua. Deve ter roubado o livro de alguma criança e foi ler naquela sala, achando que estaria segura. Usava um short jeans surrado e uma camiseta dessas em formato de T com chinelos havaianas. Coitada. Se o remédio não tivesse tão caro, eu compraria umas roupinhas pra ela.